sábado, 5 de abril de 2014

Shakespeare, presente



Camille O´Sullivan sabe, meticulosamente, o que fazer com o poema The Rape of Lucrece, de Shakespeare.


Sua voz tanto encontra o tom de nos conduzir narrativamente, na pancada da metrificação, como chega, por momentos, a desprender-se em números autônomos, como se estivéssemos diante de canções compostas para aqueles fins, e não uma estrutura coesa, compacta. 

O talentoso pianista Feargal Murray compõe toda a cena com a atriz e cantora. Além deles,  poucos elementos de cena, alguns ladrilhos de madeira arrancados, um chambre preto e uma camisola branca. E só.

A montagem leva a assinatura da  Royal Shakespeare Company e foi apresentada ontem, na Mostra Oficial do Teatro de Curitiba. 

Há uma precisão técnica, não digo apenas vocal, mas da cena como um todo, que ilumina. Não me recordo em que momento da narração, pressuponho um dos instantes de maior agonia de Lucrécia, já vítima do estupro, em que Sullivan, cantou as linhas do poemas, quebrando-as, numa escanção de quem sobe os degraus de uma escada na iminência de uma queda.

Tanto artesania poderia sufocar o conteúdo; tanto discurso técnico poderia dispor num segundo e indesejável plano o assunto. Não com um autor como Shakespeare; não diante de uma poesia tão candente; não diante de um assunto que, vergonha nossa, vem do século XVI até nós, ainda com algum resquício.

Há várias possibilidades de ler este poema. O horror da violência à mulher pode receber uma conotação que me parece redutora quando o modelo escolhido para ser cantado é de uma esposa virtuosa, o que dá margem a se pensar que fora deste parâmetro o domínio e o arbítrio sobre o corpo se relativizam. 

Tendo, homem afeito à poesia que sou, suplantar a líquen dos elementos de época que se pregam às moedas de ouro das obras-primas universais, imaginar não a moral visível no primeiro jogo de cena do texto. Ao que me parece, Shakespeare condena o orgulho excessivo de Collatine e, mais do que isto, o seu exibicionismo, a maneira como ele canta as virtudes da esposa a despertar a cobiça do filho do Rei, Tarquin. 

Mas compreender esta punição não seria, de algum modo, absolver o criminoso e, em igual medida, tornar a vítima, cúmplice do suplício a que teve de se submeter? E sob este viés, de referências morais que tem como valor, como os líquens, mas que nos indicam o tempo que já se passou, em contraste com a poesia, cintilante, que Shakespeare diz "presente" ao debate da ordem do dia, às pesquisas sobre os 26% de pessoas que admitem estupro - não importa que sob o argumento das roupas; este percentual da pesquisa é complacente com o crime, e crime de estupro é crime de estupro sob quaisquer contingência e sua causa vai ser sempre uma: o estuprador. 



Vermelho Amargo e uma figura de linguagem que pesa em cena


Bartolomeu Campos de Queirós está em cena.
A opção cênica impressa em  Vermelho Amargo por Diogo Liberano é de por o texto como núcleo irradiador de todo o espetáculo, que assisti no Fringe, Mostra Paralela do Festival de Teatro de Curitiba 

O cenário possui uma estrutura retangular com um tecido vermelho em cujo espaço contracenam, ora como narradores, ora dramatizando as ações, Daniel Carvalho Faria e Davi de Carvalho; ao lado, em uma cadeira, Luiz Paulo Barreto, realçando ainda mais a dimensão textual, pois, atua, unicamente, verticalizando o preciosismo lírico da literatura. 

Enfrenta-se o texto no que ele tem de voltagem metafórica, distribuídos em períodos repletos de palavras preciosas, de construções bem elaboradas, mas afeitas, porém, ao ritmo da leitura, ao compasso do olhar na página para saborear, sem a pressa inerente ao palco, sem a necessidade de se fazer ouvir e de pronunciar bem. 




Optou-se, figurino e cenário, pelo mergulho no símbolo. Fala-se de uma madrasta. Em como ela partilhava as fatias do tomate no almoço. A avareza de afeto. As pontas do retângulo aveludado se erguem e materializam o tomate tantas vezes evocado; outras, no porão em que desejos secretos se consumiam.

A beleza do texto, exponenciada pela encenação, não conseguiu dirimir um problema sério da transcrição de literatura para a cena; o caso é que a metáfora, figura de linguagem base para Campos de Queirós, se transmuta bem no palco como uma boa coadjuvante, amplificando outros sentidos, mas não como linha mestra entre os intérpretes e a plateia, por uma questão muito elementar: o tempo que se requer para compreender a associação, o floreio e a beleza escrita, dissipasse numa relação performática.