terça-feira, 17 de setembro de 2013

Invasões. Deslocamentos. Cruzamentos de sentido.

Natal, 1942. Os Estados Unidos instalaram bases militares. Estávamos em Guerra. Deslocamentos. Invasões. Cruzamentos de sentido. Signos. Estados Unidos1964 a 1966: tem-se início, com a vinda dos Beatles, e "I Want To Hold Your Hand" atingindo o topo das paradas de sucesso, a primeira das “invasões britânicas”. O blues, música de negros, estava aos escombros, atropelada pelo rock 'n' roll. Invasões. Cruzamentos de sentido. Signos. Agora, as bandas da Inglaterra, muitas delas, embebidas no combustível do blues, apareciam e dominavam o cenário americano.

Guaramiranga, 2013. Eles são os Clowns de Shakespeare, da Inglaterra. Mas são de Natal. Deslocamentos. Invasões. Cruzamentos de sentido. Quem os dirige é Gabriel Vilela. Pela primeira vez. Gabriel Vilela encenador que montou espetáculos do Galpão: "Romeu e Julieta', "Rua da Amargura". Os Clowns foram co-dirigidos em um espetáculo que lhes marcou a trajetória de 20 anos, "Muito barulho por nada" por Eduardo Moreira, ator do Galpão. Os círculos de referências vão se entrecruzando. Invasões. Cruzamentos de sentido. Signos. 

Foi apresentada a tragédia "Sua incelença, Ricardo III" na Arena montada para receber os espetáculos. Havia, antes, uma lona que foi retirada. Apesar das circunscrição canônica de que estávamos diante de uma tragédia, o elemento cômico permeou a encenação. Aqui cumpre a primeira reflexão: barateou-se o texto em função do riso? Eis uma hipótese. Desvirtuou-se o que poderia ser uma deliberação inicial?

Invasões. Deslocamentos. Cruzamentos de sentido. Lembro-me aqui da longa discussão sobre o riso havida entre frei Guilherme e o venerável Jorge no romance "O Nome da Rosa" - era, ou não, lícito o riso? - Jesus teria sorriso? - "a Bíblia não diz que ele o tenha feito", provocava Jorge; "também, não há registro, expresso, de que ele não tenha rido", devolveu o frei.

Quem quiser mirar a superfície, o colorido da maquiagem, os guarda-chuvas, o figurino, estará diante de um lugar comum: o de que Gabriel Vilela interpôs, aos Clowns, os seus elementos recorrentes. Mas, creio eu, é sempre possível mirar além da superfície e entender as implicações e diálogos entre forma e conteúdo; entre a voz da encenação e o grito de rebate do grupo, - que, sim, já tem timbre próprio, - num diálogo criativo e presentificado.

Retomando para a discussão de gênero, se possível contaminar uma tragédia com riso sem elidi-la, sem fazê-la menor. Fico num exemplo. Na matança dos sobrinhos herdeiros por ordem de Ricardo III. A perversidade do ato foi trazida em cena num gesto simples. Dois cocos, gravados em sua casa com o desenho de rostos dos inocentes. O matador, encouraçado feito um cangaceiro, puxa os canudinhos e dá um nó em ambos. Matador de aluguel shakespeareano. Cangaço. Em couros e bridas e rayban. Invasões. Deslocamentos. Cruzamentos de sentido.

Há, ainda, um vigor cênico, um respeito ao texto, um enfrentamento do clássico potencializando-o e não sujeitando-se a ele. Eu poderia estabelecer uma série de outros deslocamentos, fios que se fecham e se escapam, de línguas que se cruzam.  Fica
rei com três.
Primeiro. Fernando Yamamoto. Encenador do grupo.  É de São Paulo. Mas desde muito cedo mora e vive em Natal. No Nordeste.  Seu sobrenome, portanto, não fez apenas uma migração, uma viagem. Seus ancestrais vieram, presumo, do Japão.

Segundo. Marcos França. Ator e músico. Ele interpreta o papel título em Faz parte da banda Mad Dogs. Em 2003 e 2004, se apresentou no Cavern Club, templo sagrado dos beatlemaníacos de todo o mundo.

Terceiro. Titina Medeiros. Em Guaramiranga, há uma moça chamada Claudinha. Ela trabalha na produção do festival. Desde que soube que a empregada da Chayene estava na cidade, que me pediu que eu a apresentasse. Há quem julgue incompatíveis teatro de grupo e Rede Globo. Titina provou que não. É uma parceira do grupo. Recusou um papel este ano na emissora porque havia agendado, antes, compromissos com as comemorações dos 20 anos dos Clowns. Titina é suas escolhas. Claudinha a abraça, emocionada, e chora, em frente ao restaurante do Franzé.

Invasões. Deslocamentos. Cruzamentos de sentido.
É isso o que se articula, em cena. E é esta a maneira que eu me proponho a dialogar com "Sua incelença, Ricardo III", dos Clowns, e de Shakespeare. 



segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Jogar e brincar num mesmo verbo

Não é à toa que em algumas línguas, como francês e inglês, o verbo "brincar" e "representar" são uma só palavra. As crianças bem o sabem disso. E foi essa a aposta do grupo Pavilhão da Magnólia. Unir a capacidade inata e imaginativa de cada criança para compor em A Festa , espetáculo que se baseia no romance Luna Clara e Apolo 11, da escritora Adriana Falcão, uma montagem lúdica e inteligente, apresentado, domingo que passou, na Mostra Ceará, dentro da programação do Festival Nordestino de Teatro, de Guaramiranga.

A pedra de toque da encenação foi compreender a capacidade imaginativa de seu público e não ter receios de fazer uma montagem com várias trocas de personagem, alternância entre narração e dramatização, revezamento de personagens, além de não amaneirar uma história que se bifurca em duas, enfrentando o que poderia ser uma complicação de entendimento da história com uma abordagem criativa.

Neste sentido, a direção de Nelson Albuquerque, que também está em cena, dá uma aula de como é possível ser didática sem ser chata, sem ser professoral, ao mostrar os elementos cênicos que são representativos dos personagens, algo avatares de games: as lâmpadas que se transformam em cachorros; o colete que simbolizava o personagem Doravante, o balão que representava o cavalo Equinócio, os óculos, o colar verde e o timbre tagarela do papagaio Pilhério, e assim por diante. 

Tal recurso revelou-se bastante funcional à medida em que, pelo andar da narrativa, uma história intrincada, com duas subtramas se cruzando, a da busca do jovem Aventura pelo seu amor, Doravante; de Luna Clara, filha destes, em busca de seu amor, Apolo Onze. Assim, com a opção pelo o revezamento de personagens, que partiam de bases comuns para os papéis, o que trouxe uma ótima dimensão de ludismo, entre o próprio elenco, com uma atuação uniforme, bem pontuada e se não tivessem um rigor a marcação e as passagens com as viradas dos papéis teria sido comprometida, algo que não ocorreu.

 Ou seja, vimos no palco, em dois movimentos simultâneos, o que foi a base essencial do espetáculo: um jogo em cena, entre os atores, apropriando-se de uma bela história, que a devolveu em forma de uma grande brincadeira, uma festa,  que tinha de ser apreendida pela plateia.

Destaque ainda para a iluminação - a entrada em cena é apoteótica, com o canhão de luz colorido, além do excelente uso das projeções: um exemplo bem pontual aqui é da ponte, essencial para a virada da narrativa, pela sua construção e desconstrução: como colocar isto em cena? O telão com a própria palavra "Ponte" escrita e no qual as palavras sumiam foi um achado.

Uma encenação que entende a criança como um espectador inteligente e imaginativo .  

                                                                                                          (foto de Bruno Soares)

NELSON RODRIGUES, DE RICARDO GUILHERME


Ricardo Guilherme é um homem da literatura e do teatro. Um artista criador nestas duas expressões. Ambos compartilham do ofício duplo da escrita: tanto escreveram ficção como teatro. Ao prestar tributo a outro artista, que fincou seu marco nestas duas áreas, Ricardo Guilherme conseguiu, como só alguém que conhece bem os códigos e chaves destes dois universos, estabelecer um diálogo em que corpo e texto se conjugaram na tentativa de colocar em cena um conceito: a repetição dos temas do amor, em todos os seus abismos.

O espetáculo "Flor de Obsessão", com assinatura do Grupo de Pesquisa, teve direção, adaptação e atuação de Ricardo Guilherme. Foi apresentado no primeiro dia do evento, sábado, no teatrinho Rachel de Queiroz, inserido na programação da Mostra Ceará.

O figurino todo em preto, uma calça, camiseta; Ricardo entrou descalço. Em cena, o palco nu, com um adereço apenas em que sentou-se. A maquiagem ressaltou a busca de um poética mais essencial: maquiagem, lápis preto, realçando o contorno dos olhos e a boca pintada em vermelho - aqui estabeleceu-se a base para uma série de partituras corporais e vocais. Ricardo, mãos esticando o rosto, esbugalhando os olhos, iniciou a espécie de epílogo, com um registro vocal que lembrava o tom bovino e caricatural do próprio Nelson. O texto, uma avaliação do dramaturgo sobre o seu próprio trabalho, dialogou diretamente com essa proposta chave: partir de Nelson, refazer seus traços no próprio corpo do ator, assumindo suas obsessões como material a ser trabalhado cenicamente.

Esta é a grande chave poética da encenação: apropriar-se. Ricardo Guilherme não se prendeu a fazer uma narração, escudado no seu talento e na sua expressividade como ator. O que se buscou foi um diálogo criativo. E o ponto base foi a concepção de máscaras, que do rosto partiam para registros corpóreos, intensificados com uma palheta de timbres vocais que davam conta da orquestração polifônica dos mais diversos tipos recorrentes da escritura dramática de Nelson Rodrigues.

Obsessão entendido aqui não como mais do mesmo, mas como possibilidades de multiplicação de sentidos pela reiteração. É disto que Nelson Rodrigues fala ao refletir sobre seu ofício - não por à toa, texto inicial do espetáculo e, suprema ironia conceitual, retomado no fim da montagem, num gesto de repetição em que o contexto atualiza o sentido das palavras, ainda que ditas do mesmo modo, sem alteração; e é disto também que fala Ricardo Guilherme que, esculpindo-se em partituras, distribuídas em um preciso desenho de cena, oferta ao público, ele também, uma flor, pétala por pétala, a desvelar os avessos de uma obra que lida com o amor, pergunta que continua a ser feita e a demandar novas e diferentes respostas


20ª edição do Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga (FNT)

- primeiro dia -

"Gente, estamos no terreiro da AGUA. Somos do interior e as melhores coisas que nós fazemos é neste ambiente e assim, sem cerimônia".

E foi mesmo sem cerimônia que Nilde Ferreira conduziu sua fala. Ela, fundadora da AGUA. Ela, coordenadora do FNT.

E foi naquele terreiro e com a fala atravessada de emoção, que Nilde contou o começo de tudo. "Na década de 90, foi feito o censo e se constatou que 90% da população adulta de Guaramiranga era analfabeta".

Uma série de ações para combater esse problema foi esboçada e se partiu para ação. "O Festival Nordestino de Teatro, que foi tomado e assimilado pela cidade, que participa e que faz esse festival, é fruto direto de uma destas ações"

                                                                                                                                      (foto Sol Coelho)

sexta-feira, 5 de abril de 2013

FESTIVAL DE TEATRO DE CURITIBA #2013

entre a cena e a vida

Ficar entre o que o espetáculo propõe ou mensurar, a partir do que o texto dito em cena sugira, possibilidades do que poderiam ter sido feitas?

Eis o dilema. Havido apenas em montagens cuja dramaturgia palpite e nas quais a encenação tenha  algo a dizer. É o que acontece com Circo Negro, montagem daqui de Curitiba, de um texto do dramaturgo argentino Daniel Veronese, apresentado ontem no teatro HSBC, na programação do Fringe.

Embora não conheça a escritura do texto de Veronese, infiro, pelo que a cena de me traz, que o jogo de representação, chave que estrutura a sequência de ações, desdobrado tanto para a perspectiva da construção teatral como na prática cotidiana, estabelece uma tensão entre o dentro da cena e o fora dela. Melhor: entre vida e arte, numa fórmula mais simples.

As partituras elementares, trabalhadas fisicamente, nas matrizes gestuais dão o tom do que virá a ser a base comum a partir da qual a encenação se desdobrará: buscará o essencial que cada gesto traz . A cena de abertura, sem fala, com marcações de gestos em tom de caricatura, como o virar de cabeça, sem o uso de palavras,   é toda construída como uma espécie de prólogo, de síntese da poética que será posta em cena.

Creio que o gesto, trazido no que ele tem de símbolo, tanto serve de possibilidade para a encenação revirar os códigos teatrais numa pegada mais metalinguística - opção escolhida e evidenciada pela direção de Sueli Araújo - como poderia se desdobrar naquilo em que o gestual, como construção de máscara cotidiana, suscite caso o jogo escolhido fosse uma relação de conflito entre o que está no palco, e o que fica fora dele - algo que não foi escolhido, mas prenunciado em alguns momentos.

A brincadeira de imaginar possibilidades dramatúrgicas da cena, cito de exemplo o jogo dos atores imaginando situações como "pentear o cabelo em frente ao espelho", acionada pelo "já", deixou clara a opção para o discurso dentro da cena.

Mas é possível eliminar o cotidiano e a vida, num visada mais metalinguística? Em geral, a resposta é sim. Porém, há, claro, vida, sangue e ossos, num olhar do teatro sobre o teatro, até porque quem pisa no palco são seres humanos, com história e sangue. Aqui, uma pequena digressão. Lembro-me de uma discussão sobre  validade da literatura de Jorge Luís Borges, construída nas referências de leitura e da alta cultura, em contraposição a, por exemplo, alguém como Hemingway, cujo trabalho eviscera a aventura do viver. Fecha-se a pequena digressão. 

Porém, reitero, há humanidade dentro do jogo de espelhos do metateatro. Se pensarmos no 'circo', trazido não gratuitamente no título,  naquela linha aristotélica da poética, na sua perspectiva moral, da representação teatral como algo a ser evitado na práxis e purgado na catarse para não ser realizado na vida, assim, a crueldade da caricatura, posta no picadeiro como o lugar do risível, ganhou dimensões avassaladoras no número em que, humilhados, os atores viram de costas para a plateia, nus, com um alvo colado nos traseiros.